domingo, 31 de janeiro de 2010

Exercitando Literatura/Ficção

Ele não conseguia dormir na noite chuvosa de trovões. Suava muito, e após adormercer por breves minutos acordou assustado, o suor escorrendo em seu rosto. Levantou-se e foi até o banheiro, no escuro mesmo, sem se dar o trabalho de acender a luz. Parecia estar tonto. Havia tomado uma taça de vinho, mas aquilo não era nada para ele, certamente não tivera nenhum efeito. Secou o suor do peito com uma toalha; abriu a pia e molhou o rosto, deixou a água escorrer pela nuca, antes de enxugá-la. Voltou entre sombras, passo lento, até o quarto. Lá pareceu ver um vulto, na penumbra. Deu um passo atrás, um ladrão talvez. O vulto era alto, ombros retos, postura imponente. Tateou em volta de si, sem tirar os olhos do vulto, em busca de algo para defender-se, mas não achou nada.
- Não tema - disse a voz grave do vulto.
Já havia escutado aquela voz antes, muito tempo atrás. Fazia anos, mas lembrava-se. Não podia acreditar. Caminhou, passo ante passo, em direção ao vulto, que agora tomava formas mais visiveis, parcialmente iluminado pela luz da lua que entrava pela janela. Caminhou até ficar à alguns metros do vulto, e continuou caminhando, até ficar frente à frente com ele. Agora não era mais um vulto, era uma outra coisa, vinda do passado.
- Pai? - Perguntou ele.
O homem alto e imponente, queixo reto, barba bem feita, austero mas sem sinais de velhice, acenou com a cabeça em sinal afirmativo.
- Não é possível, você está morto.
- E você está vivo, meu filho.
Ele olhou para baixo, para os lados, tentando se dizer que era delirio, afinal, nunca acreditara naquilo, nunca sequer pensava sobre aquilo. Ergueu a mão e apalpou o rosto do pai. Parecia firme demais, real demais, para ser uma ilusão, para ser um fantasma.
- O que é isso? O que significa? Estou morto?
- Não, você está vivo, não se preocupe com isso.
- Então por que você está aqui? Quero dizer, por quê?
- Diga-me você - respondeu o velho.
Ele não entendia o que significava; tinha seus vinte anos quando o pai morrera, mas aquilo não era nenhuma pendencia para ele, estava tranquilo com a situação, não tinha problemas existenciais, tampouco em sua vida. Bom emprego, diretor da empresa com pouco mais de 30 anos, carreira de futuro, apartamento e carro importado, solteiro e conquistador - não tinha mais o que desejar.
- Diga logo, o que você quer? - respondeu inquieto.
- Talvez eu seja só uma ilusão, talvez seja sua insônia, ou a tempestade lá fora. Talvez eu seja só o céu, cor de pessego; você viu que belo o pôr-do-sol esta tarde?
- Eu nunca vejo o pôr-do-sol.
- Talvez você devesse olhar mais vezes para o céu, para as coisas ao seu redor.
- É isso então, você veio me dar conselhos para a vida?
- Não, não, estou só puxando conversa com meu filho, na falta de coisa melhor do que falar. Falamos do tempo que faz para não falar do tempo que passa. Você sabe de que autor é essa frase?
- Não, não sei. De quem é?
- Também não sei. Faz tempos estou tentando lembrar, mas não consigo; pensei que talvez você soubesse. Nem adianta jogar no google, eu já tentei.
- Você não tem onisciencia depois de morto? Continua com problemas de memória?
- Onisciencia é dom divíno, meu filho. Sou só um fantasma, não Deus. Às vezes não conseguimos nos livrar de algumas doenças, as carregamos conosco. Está aqui - apontou com o indicador para a cabeça - não no corpo. No fim é tudo que te resta, sua mente.
- E como é, lá do outro lado?
- Não sei não, meu filho.
- O que isso significa? Você está no inferno?
- As coisas não são bem assim. Os tempos são diferentes aqui, do que aí. Digamos que eu ainda estou em um período de transição. O que para você são anos, aqui podem ser instantes.
- E você está por aqui esse tempo todo? Por que apareceu agora?
- Não, não se preocupe, não fico rondando por aí, assombrando. Isso é coisa de hollywood. Por que agora? Não sei, talvez tédio, talvez o belo céu que fez esta tarde, queria falar disso com alguém. Sério que você não viu?
- Não, não vi, e não me importo com o maldito tempo.
- O que faz ou o que passa?
Silêncio.
- O que você tem feito com o seu tempo, meu filho? Por que no fim, é tudo o que importa, o que fazemos com o tempo que nos é dado.
- Isso eu conheço, essa frase, é do Senhor dos Anéis. Tolkien.
- Sim, foi lá que ouvi essa frase, mas reconheça, é uma bela frase.
- Então é isso que acontece depois? Toda a filosofia existente, e você se resume a copiar frases de autores que não lembra, ou de filmes?
- Nunca fui um grande filósofo, ou um pensador própriamente dito. Fui um bom homem, eu acredito, e acho que é isso que importa.
- E valeu a pena, no fim? A vida vale a pena ser vivida?
- Agora sim, um grande dilema filosófico, talvez o maior deles.
- Você não me respondeu.
- Você tem que responder essa pergunta, meu filho. O que você acha?
Olharam-se profundamente nos olhos. Ele não sabia responder.
- Ouça - disse o velho - A chuva está passando. Estou indo junto.
- Você só aparece com a chuva? O que é isso, um fenômeno tipo aurora boreau?
- Não, meu filho, não. Eu só gosto do som da chuva. Pense sobre aquilo. Um dia você terá que responder, não para mim, mas para si mesmo. Use bem o seu tempo, meu filho.
- Você aproveitou bem o seu?
- Dentro das minhas possibilidades, sim.
- Te verei de novo?
O velho sorriu, ironico:
- Sim, certamente nos veremos de novo. É uma etapa inevitável na vida de um ser humano.
- Quero dizer, assim como hoje, ainda vivo?
- Não, acho que não. Quem sabe, algum dia desses.
- Posso te dar um abraço?
- Você acha mesmo que precisa pedir isso para o seu velho pai?
Abraçaram-se, longamente, pela última vez.
- Algum conselho final? - perguntou ele
O velho pensou um pouco antes de responder:
- Humm... Cuide bem da sua memória.

Ele sorriu, e piscou, e não viu quando o velho sumiu. Voltou para a cama. Deitou e dormiu.

Um comentário:

Merini disse...

Você tem tido um bom aproveitamento do seu tempo Márcio, parabéns pelo texto, é incrível.