segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Sobre méritos

Outro dia, uma amiga escreveu no twitter uma frase, à qual constestei, e me gerou algumas reflexões. Como preciso mais que 140 caracteres para expor meu pensamento, acredito que o tema rende um post. Não vou nomeá-la aqui pois aprendi com a história do "Lembre-se de Pedro" que não deve-se nomear as pessoas, se elas puderem se sentir ofendidas. Sinceramente, de coração mesmo, não estou criticando ela, nem acharia problemático escrever sua identidade (só não o faço, por que não sei o que ela acha a respeito). Ela sabe que a amo (no bom sentido, claro. fraternalmente). Mas vamos ao que interessa.
A síntese do comentário era algo como "Alguém me explica como uma empregada doméstica pode ganhar mais que um estudante de graduação? Injustiça!". Aí me veio à mente toda uma série de questões sobre "mérito". Por que alguém que se dedica a um tipo de trabalho "merece" mais do que outra que se dedica a outro tipo? Por que se têm isso como definição de justiça e assim constrói-se uma escala hierarquica do trabalho? Engraçado que frequentemente eu me posiciono contra meus próprios "interesses", mas não é por que sou universitário que devo indiscriminadamente defender os universitários. É preciso ter senso critico de auto-análise, e defender pontos que possam prejudicar a si próprio. Modéstia à parte, acho que seria um excelente parlamentar nesse sentido, pois a última coisa que penso são meus próprios interesses. Ou talvez fosse um péssimo parlamentar, justamente por isso. Hahaa. Mas retomando o tema. Não acho que um estudante, ou um comunicador, ou um administrador, ou quem for, dos trabalhos mais "elevados", seja mais "digno", ou mereça mais do que pessoas que exercem profissões humildes. Nós já tiramos tanto delas (pessoas pobres), e ainda reclamamos pelo pouco que elas têm? Nossa vida, vida de classe média, é muito mais do que privilegiada. Só de estar em uma universidade, e uma universidade pública, já demonstra que viemos de um estrato cuja vida é mais confortável. Penso que todos devem ser valorizados, e recompensados igualmente (ansia igualitária de socialista recalcado é fogo, né?). Não existe um trabalho melhor do que o outro, então por que um deve ganhar melhor do que o outro? E pior, quando alguém humilde ganha melhor do que alguém da classe média, enxergamos isso como uma aberração, uma injustiça do estado natural da coisas. Esse é um pensamento comum à nós, classe média. Mas ora, igualdade verdadeira - mais, equidade - não é tratar todos igualmente, mas tratar de forma desigual aqueles que são desiguais, na medida de sua desigualdade. Por causa desse sentido se fazem as cotas sociais nas universidades - uma medida muito elogiada de minha parte (diferentemente das cotas raciais). E por causa disso penso que, fosse para promover a justiça, os mais pobres deveriam ganhar realmente mais. Sim, uma empregada doméstica precisa mais de salário do que um estudante universitário. Então é justo que ela ganhe mais do que o estudante universitário. "A cada um na medida de sua necessidade", era o lema comunista. Reconheço que igualdade plena jamais alcançaremos, mas não custa rumar em sua direção, e defender seus principios. Veja, há um perigo maior em estabelecer que uns são melhores que outros. Pois se começarmos assim, dizendo que o universitário é melhor que a empregada, acabaremos dizendo que a raça ariana é melhor do que os judeus. Há que se ter noção que somos todos iguais.
Mas e a especialização do trabalho? Um estudante de engenharia dedica anos para aprender a construir pontes, enquanto uma empregada doméstica leva semanas, que seja meses, para aprender a limpar e cozinhar. Diante desse argumento há duas perspectivas. A primeira é que, independentemente do tempo de estudo, os dois exercem a função de igual modo, com a mesma dedicação, e o mesmo suor do corpo. Ambos tem 24 horas de vida por dia, e dedicam um xis desse tempo de suas vidas ao trabalho, que deve sustentá-los, mantê-los. Mas há outra perspectiva (que não é oposta à primeira, pelo contrário, vejo como complementar) da responsabilidade de cada um. Não podemos ir a extremos. Ambos são seres humanos que dedicam parte de sua vida ao trabalho, e portanto, devem ser recompensados, mas têm responsabilidades diversas. Enquanto uma empregada é responsável por uma casa, o engenheiro desse exemplo constrói a ponte que vai beneficiar a sociedade como um todo - e se falhar, pode projudicar muita gente. Acredito que, em certa medida, não há como deixar de atribuir certos graus. Mas nessa atribuição de graus, existe um limite tênue. Uma coisa é o profissional, outra o ser humano (sobre este, são todos iguais, independente da profissão). A linha tênue à qual me refiro é incorrer no erro, que já considero exemplar, quase clássico, de Bóris Casoy. Para quem não sabe, enquanto este apresentava o Jornal da Band o áudio "vazou" em um momento que não devia e ouvimos ele tecendo comentários sobre dois garis que apareciam no vídeo "Dois lixeiros opinando do alto de suas vassouras. O mais baixo da escala do trabalho", foi o que ele disse. O vídeo, para quem quiser ver, está aqui.
A escala do trabalho. Durkheim escreveu sobre a divisão social do trabalho, mas eu não li nem a obra, nem sobre a obra. Se tivesse lido, talvez tivesse ainda mais argumentos para fundamentar minha opinião, ou outros horizontes a debater, como não é o caso, vale o registro que já existe um pensamento classico a respeito,  muito respeitado. Em sintese o que penso é que às vezes não temos como não atribuir responsabilidades, e inevitavelmente valorizar mais uns profissionais que outros, mas acho que devemos resistir ao máximo possível quanto à hierarquização de uns serem melhores que outros ou merecerem mais que outros. Primeiro, por que todos somos seres humanos, e nossa vida é determinada pelas condições que nos são dadas. Segundo, por que não existe "mérito", isso é apenas uma classificação criada socialmente, para atrubuir valor, para separar e selecionar. Às vezes, recorremos a isso - afinal, como fazer uma seleção de candidatos (a um emprego, a qualquer coisa) sem implicar um critério que inevitavelmente leve a "mérito"? Mas uns não merecem ganhar mais que outros. Fico realmente feliz de saber que uma empregada doméstica está ganhando bem. Acho que o comunicador também deveria ganhar bem, claro! Ambos merecem ganhar bem. Mas se nós passamos numa universidade e estamos nela, não foi de forma alguma por mérito. Não suamos, não estudamos, e não merecemos estar nela. As condições que nos foram dadas simplesmente foram diferentes, bem diferentes, das condições dadas à empregada doméstica. "É fácil estudar, quando não se passa fome" não me lembro quem disse essa frase, acho que foi o Lula ou o Cristóvam Buarque, mas não tenho certeza. Eu mesmo, dois anos atrás, era muito diferente, me achava "merecedor", mas hoje percebo isso. Nenhum de nós "merece" estar na universidade (esta é um exemplo, que pode ser generalizado para trabalho, posição social, etc e etc). Mas uma vez que estamos, devemos dar valor a isso, e olhar pelos outros, que não tiveram a mesma "sorte" que nós. Não por que merecem menos, por que se dedicaram menos, por que são menos capazes, esforçados ou inteligentes, mas por que as condições que lhes foram dadas foram, simplesmente, diferentes. "Os homens fazem histórias, mas somente dentro das condições que lhes são dadas", Karl Marx.
Mas então pode-se incorrer no pensamento de que "eu não me importo que os outros não tiveram as mesmas condições; quero saber de mim". Bom, pra isso, não tenho muitos argumentos, só acho que alguns dos principios do cristianismo perpassam a tudo. Somos irmãos, e responsáveis pelos nossos irmãos. Para quem tiver um pensamento como o que pressupus, apenas acho que devemos ser menos egoistas. Não digo que todos devemos nos libertar dos interesses pessoais e materiais, afinal, nem todos podemos ser figuras como Madre Teresa, mas a vida não é feita de extremos. Podemos rumar em direção à solidariedade, e isso começa olhando ao nosso redor.

Um comentário:

Merini disse...

Muito bom toda a argumentação Márcio. Concordo contigo, não há ninguém que não mereça...