terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Legitimação do discurso

Outro dia vi um vídeo no YouTube absolutamente hilário, intitulado "Pílulas de sabedoria sobre o futuro" (está aqui). Uma moça, falando a um programa da MTV, simplesmente constrói um raciocinio aparentemente incoerente e absurdo, de onde vem o feito de humor. Mas aí, revendo, pensei: sabe que, interpretando direito, o que ela diz pode até fazer sentido? Então, para exercitar os atributos da análise do discurso (na verdade isso nem é exatamente análise do discurso), resolvi fazer um exercicio de legitimação do discurso, e "provar", demonstrar, como ele é coerente e racional (modo missão impossivel on).
Eis o texto, transcrito:

Eu queria chorar por que eu não tenho a condição de prever meu futuro além do ponto final se tornando uma outra lingua brasileira. Por que eu acho que o futuro a Deus pertence.. e a Aton. Então o futuro pertence ao ponto Aton. Por que eu acho que nosso futuro é muito reluzente. No futuro a gente pira. Não vai mais ter a quem se reportar. Então as réplicas, elas são constantes. Você não pode adequar que a sua réplica um dia foi uma inocencia, né? Então, os treplicantes são aquelas crianças que irão defender o futuro Aton. Aí eu vou explicar o por que Aton. Por que você nunca sabe de onde vem a morte. Às vezes você pode estar na cozinha de um cara e achar que aquele lugar não existe mais, por que você não pode voltar, mas o lugar existe, ninguem vai derruba-lo. Então você nunca sabe de onde vem a morte, e o futuro reside em relutar. Em fazer uma revolução interna e conduzir até as urnas todo esse sacolejo dos anos que vêm. Por enquanto à decadencia digo nada. Adeus.

Ufa (sem fôlego)! Então lá vamos nós.

"Eu queria chorar" Ela mostra que tem consciencia de sua situação perante o mundo, e devido ao racionalismo, desejaria chorar, mas é incapaz, ela não consegue chorar, pois as emoções já estão esgotadas.

"eu não tenho a condição de prever meu futuro além do ponto final se tornando uma outra lingua brasileira." Ela reconhece sua situação de desconhecimento em relação ao próprio futuro, mas começa a mostrar que algumas coisas são previsiveis. Ao falar sobre "ponto final se tornando uma outra lingua brasileira." ela tece uma critica ao lingujar contemporaneo e ao modo como a linguagem é tratada pela juventude. É uma critica às abreviações tipicas da esfera virtual da internet; devido a isso, ainda que o futuro seja nebuloso, é previsivel que as simplicações da lingua evoluição progressivamente até o momento que apenas pontos poderão ser considerados uma forma paralera de linguagem, uma outra lingua brasileira. É uma critica, por exemplo, aos emoctions usados na internet, que se formam por pontos e caracteres especiais. Note-se a deferencia à lingua brasileira, ao que ela localiza o fenomeno como caracteristica nacional, não necessariamente universal.

"Por que eu acho que o futuro a Deus pertence.. e a Aton. Então o futuro pertence ao ponto Aton." Aqui as coisas começam a se complicar um pouco. Ela localiza o ponto Aton como um paralelo de Deus. Na sociedade comtemporanea, abandona-se a noção de divindade em busca de novos referênciais. Esse novo referencial, em que Aton é uma ilustração, representa o homem em si e por si. Veja, trata-se de um "ponto". Fazendo um palalero com a questão linguistica do "ponto final", trata-se de uma questão, assim como a lingua, criada pelos homens, pelos seres humanos. Ou seja, o futuro pertence aos homens, deuses de si mesmos, é a mensagem que ela quer passar.

"Por que eu acho que nosso futuro é muito reluzente. No futuro a gente pira. Não vai mais ter a quem se reportar." A partir daqui, ela faz reflexões muito interessantes sobre política e sociedade. O futuro é considerado glorioso, pois uma vez que o homem é deus de si mesmo, é livre para fazer o que quiser. Ela prevê a prevalencia do regime do liberalismo, mas também também de uma ordem social anarquica. Todos são livres para "pirar", ou seja, fazerem o que quiser, e também não existe Estado ou controle social, uma vez que não há mais a quem se reportar. 

"Então as réplicas, elas são constantes. Você não pode adequar que a sua réplica um dia foi uma inocencia, né? Então, os treplicantes são aquelas crianças que irão defender o futuro Aton." Aqui, ela fala sobre o desenvolvimento tecnológico. Ela refere-se à reprodução humana em laboratório, e ao processo de clonagem. Constantemente, as pessoas farão réplicas de si mesmas, abandonando a concepção de filhos. Mas ela se alinha ao disurso religioso e diz que o pecado continua existindo, mesmo sem haver o toque da carne. Não se pode alegar que sua réplica foi uma inocencia. Não existe a inocencia, e também esse tipo de reprodução consiste em pecado, é o que ela diz. As tréplicas, que seriam a terceira geração de réplicas, ou as réplicas das réplicas, são a geração que melhor vai se alinhar ao discurso dominante, e passará a defender o futuro Aton, ou seja, o homem como Deus de si mesmo.

"Aí eu vou explicar o por que Aton. Por que você nunca sabe de onde vem a morte. Às vezes você pode estar na cozinha de um cara e achar que aquele lugar não existe mais, por que você não pode voltar, mas o lugar existe, ninguem vai derruba-lo." Nunca se sabe de onde vem a morte, e devido a isso, a filosofia Aton propõe a se alinhar à concepção de réplicas, ou clones, artificiais. É o homem vencendo a morte, vencendo Deus, e se tornando Deus de si mesmo, conforme já exposto. Ela fala sobre a concepção da própria realidade. A ilustração sobre a cozinha significa que ainda que você não possa voltar a determinados lugares, ele continua existindo em sua mente, em suas memórias, e ali, ninguem pode derrubá-lo ou apagá-lo.

"Então você nunca sabe de onde vem a morte, e o futuro reside em relutar. Em fazer uma revolução interna e conduzir até as urnas todo esse sacolejo dos anos que vêm. Por enquanto à decadencia digo nada. Adeus." Em sua conclusão, ela apresenta concepções sobre o que seria o futuro para o futuro previsto. Apesar que a morte  é uma constante humana, devemos relutar. Nisso, existem duas interpretação, Relutar, enquanto resistir, guardar temores, que também fazem parte do que é o ser humano. O que ela está querendo sinalizar é que, uma vez clonados e com vida eterna, os homens deixaram de ter medo, e o medo também é importante para a vida. A segunda interpretação é que ela fala em "re-lutar", ou seja, fazer novamente uma luta que já havia sido travada, não abandonar os ideais e não desistir. Lutar novamente, e fazer uma revolução contra o sistema posto. A revolução começa internamente, em cada um, e deve-se conduzir até as urnas esse desejo interno, esse "sacolejo" que ainda está por vir. Quando fala em conduzir até as urnas, prega a volta do Estado e de um regime político de representação, ante o anarquismo do "não reportar-se". Ao findar, ela alega não ter nada a dizer para a decadencia, ou seja, a decadencia estaria superada, o que indica um futuro de ascensão.

Hahaa. Divertiu-se tanto quanto eu? Viu, todo discurso pode ser legitimado e, de uma forma ou outra, fazer sentido. Hahahaa.

Um comentário:

Leonardo Moura disse...

parabens, gostei muito do seu artigo. obrigado tambem por transcrever essas palavras de sabedoria