domingo, 1 de agosto de 2010

Um elogio à Mérie (Ou: Sobre histórias universais)

Minha amiga Mérie tem escrito uma série de cartas e publicado em seu blog. 30 cartas em 30 dias, é o projeto. Belíssima sacada, que pode ser conferida aqui. Já escrevi aqui o quanto aprecio as velhas cartas trocadas entre amigos que tornam-se peças arqueológicas e partir das quais se resgata(m) a(s) história(s), recurso muito comum aos escritores, mas não só; são famosas as cartas entre Marx e Engells, em que o primeiro vivia lhe pedindo dinheiro para o sustento, ou as cartas de Churchill sobre os subterraneos do gabinete de guerra. Mas não é sobre isso que quero tratar hoje. Quero ressaltar um aspecto que gosto muito na escrita da Mérie, que é a não-nominação dos personagens. A maioria das cartas que tem escrito são nomidadas, para alguém especifico. Mas há outras em que a menção ao destinatário se faz ausente. Não significa que não é destinada a alguém, apenas que esse alguém não está identificado no texto, como se dissesse: a pessoa saberá que é para ela. Isso gera um outro fenômeno, que é a identificação do público, como um todo.
Deixa eu contar uma história que exemplifica isso. Quando Fernando Meirelles estava começando a filmar seu "Blindness", adaptação para o cinema do "Ensaio sobre a Cegueira" de José Saramago, o cotado para o papel principal era Sean Penn. As conversas tinham progredido, e estava quase tudo certo, mas Sean Penn desistiu do papel pois ele, como ator, não conseguia construir um personagem sem nome nem passado. Para quem não sabe, todos os personagens no livro de Saramago (e no filme de Meirelles) não tem nomes e são identificados de outras formas, como "o médico", "a mulher do médico", "o ladrão", e assim vai. Também nenhum deles tem uma história ou um drama pessoal prévio. Então adentramos finalmente a uma grande controvérsia nos estudos da narrativa, seja literatura ou cinema. Existem duas perspectivas que se opõem, em certa medida. Uma diz que o personagem precisa de uma história prévia, para gerar empatia com o público. O público só se sentirá envolvido com o personagem a partir de sua história e seu drama pessoal, por suas características. Esse pressuposto, da história prévia do personagem, é imprenscindível para a catarse. Catarse, a grosso modo, é quando o público se projeta no personagem, sofre junto com ele e se realiza junto com seu final feliz (ou realiza, e virtualmente expurga, seus desejos macabros, como em filmes de serial killers, e por aí afora). Contudo, há uma outra postura possível, que diz que os personagens não precisam de uma história prévia para gerar empatia no público e mesmo conquistar suas "projeções". Quanto mais aberto o personagem, com menos história pessoal, mais chances haverá do público se identificar e se projetar nele. Segundo essa postura, o público se envolve com a história a ser contada e que se dará no decorrer da narrativa, não com as histórias prévias. Informações extras, quando não modificam a narrativa, pelo contrário, atrapalham o publico a se envolver com a história (isso nos remete à comunicação: nem sempre mais informação, é melhor). Por essa postura, os personagens devem ser mínimos, propiciando que o público se enlaçe à história, na narrativa. O que eu penso é que, na verdade, as duas posturas estão corretas. Tudo depende do momento e da intenção do autor. Histórias prévias são importantes em determinadas histórias, quando se está reconstruindo a história das gerações de uma familia, por exemplo, para se criar a catarse. Personagens abertos são bons em outras, mais intimistas, em que se busca a identificação do público com (aspectos psicológicos do) o personagem. Personagens abertos, sem história, sem nome. Nesse tocante, e finalmente chego à Mérie, gosto muito desse recurso, dessa segunda perspectiva. Alguns de meus filmes preferidos usam esse recurso. "Blindness" é um exemplo. "Cães de aluguel" é outro. Certamente há mais, mas reconheço que é bem pouco usado. Penso o seguinte: o que importa, para o público de "Blindness" se o médico chama-se José ou João, se vem de família nobre ou emergente, se era bem sucedido ou frustrado, e demais informações? Sean Penn precisa delas, tudo bem, mas para mim, são completamente inúteis. Quanto mais você define, mais você limita. Se o personagem chama-se "o médico" é uma história universal e pode ser contada em qualquer lugar do mundo, tocar a todos. Se o personagem se chama "João", então é uma história de lingua portuguesa, e falantes de outras linguas já terão uma limitação na identificação (o mesmo vale para em que lingua for). Se o personagem é rico ou pobre, outra limitaçao na identificação. E assim vai. A história de Saramago é genial pois é absolutamente universal, mas não é de Saramago que estou falando, é da Mérie.
E por que estou falando isso tudo? A Mérie usa, muito bem, esse recurso de identificação. Em algumas de suas cartas fala diretamente com seu interlocutor, sem nomeá-lo: "você" isso e aquilo. O leitor transeunte pára e lê a carta, como se fosse para ele. Uma vez que não há identificação do destinatário, poderá se projetar facilmente em seu lugar. Mas isso é um exemplo menor. O mais interessante, e já disse isso para Mérie, é a protagonista usual de suas histórias. Definida apenas como "ela". Mas quem é "ela"? É ela, ué. A personagem não tem nome. É uma personagem, ficção, ou está escrevendo sobre isso mesma? Um pouco de cada, já disse Mérie. E aí está a grande sacada. As histórias são narradas na terceira pessoa, mas não há o narrador onisciente; elas são contatas a partir do ponto de vista da personagem. Há duas grandes vantagens nisso. Primeiro, a narração em terceira pessoa seguindo um personagem único propicia o aprofundamento psicológico da obra no personagem. Torna-se pessoal, como se fosse em primeira pessoa, mas o narrador pode dizer coisas sobre ele que o próprio eventualmente não teria "consciencia" de fazê-lo. Nesse sentido, do uso desse recurso e guardadas as devidas proporções, me ocorre agora, lembra "A estória de Lélio e Lina", de Guimarães Rosa, que li semestre passado. A segunda vantagem nessa narrativa é que ela evita o uso do "eu", que dependedo de como utilizado pode gerar antipatia no público, passar a idéia de arrogancia ou sentimentalismo excessivo, gerando afastamento no público, embora esse recurso também possa ser muito bem usado, como nos textos da Thai. Esse evitamento, abre margem para uma saudável dubiedade de interpretações. Haverão os que acreditem que ela fala sobre si própria. Se for assim, genial, pois pode contar coisas sobre seus sentimentos sem se expor; não é ela, autora, mas ela, personagem. E enquanto personagem, um personagem muito bom para conquistar a identificação de seu público. Se ela tivesse um nome, Maria, Joaquina, Josefina, ou seja qual for, se trataria de um personagem, devidamente caracterizado. Mas ela, personagem não-nominado, pode ser qualquer uma, inclusive o leitor(a). O estilo das coisas que são escritas, predominantemente sentimentos, também compõe o cenário que faz do texto um bom texto. Esse recurso, em si, nada significa se o texto dela, autora, não fosse bom. Então, tratando-se de sentimentos, emoções, que todos temos, e sendo ela, personagem, um personagem não-nominado, o leitor lê, e poderá dizer: sou eu. Um personagem universal. Tão universal como a história de Saramago.

2 comentários:

Merini disse...

Bom dia, ou será boa noite ainda, não sei. Só sei que eu fiquei contentíssima com o que li aqui, Márcio. De verdade, obrigada pelas palavras, pelas comparações, me sinto honrada. Pode-se dizer que é minha primeira crítica literária e me senti muito feliz com tudo o que você disse. Obrigada!

Thainá disse...

Ô até eu peguei carona e ganhei um 'confeti' também hahaha Beijos