"Que pena, vazou um pouco de luz. Mas tudo bem, a gente corta depois, na ampliação". Essa frase não existiu, não foi dita realmente. Não foi dita, apenas por que não passou pela cabeça de ninguem dizê-la, mas poderia perfeitamente ter sido dita. De fato, vazou luz, e é verdade que vai ter que ser arrumada, na ampliação.
Às quintas-feiras faço aula de Fotografia, na UTFPR, como optativa (ou enriquecimento curricular, como gostam de chamar, oficialmente). É uma matéria de Design, não do meu curso, mas como gosto da área, quis fazê-la. Em certos áspectos, é um pouco decepcionante. Não sairei dela um fotógrafo profissional, mas ainda assim é divertido fazer. Divertido, sobretudo, por um áspecto de nostalgia que essa disciplina ainda guarda, no modo como é dada na UTFPR.
Usamos cameras profissionais, analógicas. Sim, analógicas, com filme. Existem cameras profissionais digitais, mas a universidade simplesmente não as tem. Aí já começa a nostalgia. Temos que comprar os antigos (e quase já não mais fabricados) filmes. Cada um custa 23 reais. Depois mandar revelar, num laboratório especifico (IrisColor ou Ibiza não valem), mais 20 reais. Se fossem cameras digitais, tirariamos 200 fotos, à vontade, poderiamos treinar e aprender. Já o filme tem 36 poses, e se errar, não dá pra voltar atrás. Gosto de trabalhar com filme, de verdade. O ritual, quase cerimonialistico, de colocar o filme na camera, puxar a ponta, encaixar na trava e puxar até ouvir o clique, que está preso. Ou após acabar, rebobinar, manualmente. Gosto mesmo, mas como disse, é muito mais prazer, do que aprendizado real.
Outra coisa divertida, que não existe mais. Agora começamos a trabalhar com revelação, sim, revelação e ampliação de filme. Você, e mais outras dez pessoas que fazem a disciplina, trancadas numa salinha pequena. A porta trancada, não pode ser aberta, seja para entrar ou sair. A luz vermelha acessa; é a única luz que você terá, e é muito pouca. Uma (relativamente) grande "prensa" (que não lembro o nome correto), que não são mais fábricadas mas que ainda existem na universidade. Coloca-se o filme na prensa, ajusta-se o tamanho, o alinhamento, o foco... coloca-se o papel fotográfico e aciona-se o botão. A luz branca acessa por dois segundos imprime a imagem ao papel. Ah, o papel! 68 reais uma caixa com 25 folhas (sim, eu disse sessenta e oito reais!). Depois, a parte molhada. Mergulha-se o papel e retira-se em três bacias: revelador, interruptor, e fixador. Depois, água corrente por 30 minutos. Por fim, pendura-se a foto, tal qual uma roupa, com grampos de roupa, em um varal para fotos. Espera secar. É um ritual. É muito bom. A utilizadade prática, profissional, todos concordam, é zero. Ninguem mais trabalha com filme, ninguem vai trabalhar com filme. Mas todos gostam. Há muito mais nesse ritual. Gasta-se dez, quinze minutos para fazer uma ampliação. Mas depois você tem que esperar os outros fazerem as deles. Não pode abrir a porta para sair, lembra? Dez pessoas (entram grupos de dez, de cada vez, por que não cabe mais) numa salinha, praticamente no escuro, por uma hora e meia. Você conversa com uma amiga, jura que está falando com ela frente-a-frente. Num momento, ela toca no seu braço, e você percebe que ela está ao seu lado. Você, na verdade, está virado para a parede. Não se consegue enxergar muito das pessoas nesse lugar, muito menos as reconhecer. Ao menos eu não consigo. Com o tempo, os olhos se acostumam, e a visão se torna um pouco melhor, mas ainda restrita.
E por que essa reflexão, de hoje? Outro dia, um dos execicios era com a velocidade B da câmera. É um recurso que só existe nas profissionais. Você pode deixar o obturador aberto pelo tempo que quiser, enquanto segurar o disparador. 10 segundos, 20 segundos, 1 minuto... Com essa função, de longa exposição, enquanto o disparador estiver apertado, a camera vai capturar todos os movimentos que passarem. Serve, principalmente, para o que chamam de "movimento riscado". Por exemplo, capturar a trajetória de uma vela. Ou de um cometa, se você for astronomo. E por aí vai. A partir disso, criaram o que chamam de "light-painting", ou seja, pintura com luz. Escurece-se completamente o ambiente. Aciona-se a função B. Toda luz que passar em frente à camera, será capturada. Com lanternas, você desenha o que quiser.
Peguei minhas amigas (no bom sentido.. rsrss) para modelos, como se estivessem dançando. Com o B acionado, contorna-se as formas delas, com lanternas, de trás para frente, para que a luz seja melhor capturada. O resultado, escaneado, pode ser conferido aí em cima, após árduo esforço para descobrir como postar essa imagem (ok, não foi tão árduo assim).
E só agora, após essa longa e ritualistica descrição (reflete o ritual que é fotografar) chego onde eu queria, no inicio desse texto. Lá em cima, pode ser visto, vazou um pouco de luz, na parte da ventilação da sala (não sei como isso chama, na linguagem apropriada, mas também não importa). Para entregar a fotografia, junto com as demais, para ser avaliada ao fim do semestre pela professora, terei que "retocá-la". No caso, o "retoque" nem é assim tão problemático. Na hora da ampliação, basta subir um pouco o negativo, para que a parte superior da foto, onde vazou luz, não seja revelada. Mas aí me vem uma reflexão existencialista. Essa foto representa, de certa forma, como é a vida. A vida nunca saí como queremos. Na vida, sempre vaza um pouco de luz, na parte superior. Mas precisamos, sempre precisamos, de coisas perfeitas. Claro que a foto toda escura, sem luz vazada, é mais bonita. Mas se vazou luz, vazou. Sou muita naturalista nessas coisas. Não acho certo retocar a realidade, seja com os photoshops da vida, seja com meios analógicos. A imperfeição faz parte da vida, então por que os produtos que concebemos devem ser perfeitos? Mas pensem que, na verdade, não é apenas com fotos que fazemos isso. Na vida também, e isso talvez seja o pior. Sempre buscamos retocar a vida. Sempre queremos que a vida seja perfeita. Mesmo a nossa memória faz isso; idealizamos os bons momentos, os tornamos perfeitos em nossa memória, mesmo que estivessem cheios de imperfeição. Claro que é natural que lembremos os pontos positivos, não estou dizendo para lembrarmos das coisas ruins, mas apagamos, negamos, que, junto com toda a beleza daquele momento especial, também tinha uma série de coisas estranhas, esdruxulas, e afins. Não critico completamente ter que ocultar a parte superior na ampliação, ainal, na disciplina estamos buscando a "perfeição" e a beleza máxima, da arte de fotografar. Mas a vida não é assim. E, por mais que queiramos que ela seja, na vida não há chance de retocar depois. Mesmo assim, continuamos querendo a perfeição, e continuamos querendo retocar. Mas na vida sempre vaza luz.
Usamos cameras profissionais, analógicas. Sim, analógicas, com filme. Existem cameras profissionais digitais, mas a universidade simplesmente não as tem. Aí já começa a nostalgia. Temos que comprar os antigos (e quase já não mais fabricados) filmes. Cada um custa 23 reais. Depois mandar revelar, num laboratório especifico (IrisColor ou Ibiza não valem), mais 20 reais. Se fossem cameras digitais, tirariamos 200 fotos, à vontade, poderiamos treinar e aprender. Já o filme tem 36 poses, e se errar, não dá pra voltar atrás. Gosto de trabalhar com filme, de verdade. O ritual, quase cerimonialistico, de colocar o filme na camera, puxar a ponta, encaixar na trava e puxar até ouvir o clique, que está preso. Ou após acabar, rebobinar, manualmente. Gosto mesmo, mas como disse, é muito mais prazer, do que aprendizado real.
Outra coisa divertida, que não existe mais. Agora começamos a trabalhar com revelação, sim, revelação e ampliação de filme. Você, e mais outras dez pessoas que fazem a disciplina, trancadas numa salinha pequena. A porta trancada, não pode ser aberta, seja para entrar ou sair. A luz vermelha acessa; é a única luz que você terá, e é muito pouca. Uma (relativamente) grande "prensa" (que não lembro o nome correto), que não são mais fábricadas mas que ainda existem na universidade. Coloca-se o filme na prensa, ajusta-se o tamanho, o alinhamento, o foco... coloca-se o papel fotográfico e aciona-se o botão. A luz branca acessa por dois segundos imprime a imagem ao papel. Ah, o papel! 68 reais uma caixa com 25 folhas (sim, eu disse sessenta e oito reais!). Depois, a parte molhada. Mergulha-se o papel e retira-se em três bacias: revelador, interruptor, e fixador. Depois, água corrente por 30 minutos. Por fim, pendura-se a foto, tal qual uma roupa, com grampos de roupa, em um varal para fotos. Espera secar. É um ritual. É muito bom. A utilizadade prática, profissional, todos concordam, é zero. Ninguem mais trabalha com filme, ninguem vai trabalhar com filme. Mas todos gostam. Há muito mais nesse ritual. Gasta-se dez, quinze minutos para fazer uma ampliação. Mas depois você tem que esperar os outros fazerem as deles. Não pode abrir a porta para sair, lembra? Dez pessoas (entram grupos de dez, de cada vez, por que não cabe mais) numa salinha, praticamente no escuro, por uma hora e meia. Você conversa com uma amiga, jura que está falando com ela frente-a-frente. Num momento, ela toca no seu braço, e você percebe que ela está ao seu lado. Você, na verdade, está virado para a parede. Não se consegue enxergar muito das pessoas nesse lugar, muito menos as reconhecer. Ao menos eu não consigo. Com o tempo, os olhos se acostumam, e a visão se torna um pouco melhor, mas ainda restrita.
E por que essa reflexão, de hoje? Outro dia, um dos execicios era com a velocidade B da câmera. É um recurso que só existe nas profissionais. Você pode deixar o obturador aberto pelo tempo que quiser, enquanto segurar o disparador. 10 segundos, 20 segundos, 1 minuto... Com essa função, de longa exposição, enquanto o disparador estiver apertado, a camera vai capturar todos os movimentos que passarem. Serve, principalmente, para o que chamam de "movimento riscado". Por exemplo, capturar a trajetória de uma vela. Ou de um cometa, se você for astronomo. E por aí vai. A partir disso, criaram o que chamam de "light-painting", ou seja, pintura com luz. Escurece-se completamente o ambiente. Aciona-se a função B. Toda luz que passar em frente à camera, será capturada. Com lanternas, você desenha o que quiser.
Peguei minhas amigas (no bom sentido.. rsrss) para modelos, como se estivessem dançando. Com o B acionado, contorna-se as formas delas, com lanternas, de trás para frente, para que a luz seja melhor capturada. O resultado, escaneado, pode ser conferido aí em cima, após árduo esforço para descobrir como postar essa imagem (ok, não foi tão árduo assim).
E só agora, após essa longa e ritualistica descrição (reflete o ritual que é fotografar) chego onde eu queria, no inicio desse texto. Lá em cima, pode ser visto, vazou um pouco de luz, na parte da ventilação da sala (não sei como isso chama, na linguagem apropriada, mas também não importa). Para entregar a fotografia, junto com as demais, para ser avaliada ao fim do semestre pela professora, terei que "retocá-la". No caso, o "retoque" nem é assim tão problemático. Na hora da ampliação, basta subir um pouco o negativo, para que a parte superior da foto, onde vazou luz, não seja revelada. Mas aí me vem uma reflexão existencialista. Essa foto representa, de certa forma, como é a vida. A vida nunca saí como queremos. Na vida, sempre vaza um pouco de luz, na parte superior. Mas precisamos, sempre precisamos, de coisas perfeitas. Claro que a foto toda escura, sem luz vazada, é mais bonita. Mas se vazou luz, vazou. Sou muita naturalista nessas coisas. Não acho certo retocar a realidade, seja com os photoshops da vida, seja com meios analógicos. A imperfeição faz parte da vida, então por que os produtos que concebemos devem ser perfeitos? Mas pensem que, na verdade, não é apenas com fotos que fazemos isso. Na vida também, e isso talvez seja o pior. Sempre buscamos retocar a vida. Sempre queremos que a vida seja perfeita. Mesmo a nossa memória faz isso; idealizamos os bons momentos, os tornamos perfeitos em nossa memória, mesmo que estivessem cheios de imperfeição. Claro que é natural que lembremos os pontos positivos, não estou dizendo para lembrarmos das coisas ruins, mas apagamos, negamos, que, junto com toda a beleza daquele momento especial, também tinha uma série de coisas estranhas, esdruxulas, e afins. Não critico completamente ter que ocultar a parte superior na ampliação, ainal, na disciplina estamos buscando a "perfeição" e a beleza máxima, da arte de fotografar. Mas a vida não é assim. E, por mais que queiramos que ela seja, na vida não há chance de retocar depois. Mesmo assim, continuamos querendo a perfeição, e continuamos querendo retocar. Mas na vida sempre vaza luz.
Um comentário:
adorei o teu blog em especial este texto. tenho de ler melhor com mais calma, claro :)
nunca experimentei fazer isto,embora gostasse de tentar! deve ser mesmo maravilhoso, como próprio escreves. analógico é muuito melhor!
Um beijinho (:
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