Outro dia, o Nei publicou no seu blog, disponível aqui, um post chamado "Nada a Desejar". Muito bom post, me lembrou de algumas coisas. As coisas que me vieram a mente pouco têm a ver com o post do Nei, mas sabe quando uma coisa puxa outra que puxa outra, num fluxo? Pois é. Me lembrei d'Os Maias, de Eça de Queiroz. Mais especificamente de seu epílogo, o final. Sempre amei essa cena. Me lembro (em termos gerais) de cabeça, mas peguei o livro na estante, para não cometer nenhuma impropriedade. Passada toda a tragédia, os amigos Ega e Carlos Eduardo caminham pela cidade, refletindo sobre a vida, e concordam em ter encontrado a teoria definitiva sobre a vida. Recortei o principal para vocês; vale a pena ler:
Nada desejar e nada recear... Não se abandonar a uma esperança - nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquilidade com que se acolhem as naturais mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, nesta placidez, deixar esse pedaço de matéria organizada, que se chama o Eu, ir-se deteriorando e decompondo até reentrar e se perder no infinito Universo... Sobretudo não ter apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.
[...] Do que ele principalmente se convencera, nesses estreitos anos de vida, era da inutilidade do todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na terra - porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Eclesiastes, em desilusão e poeira.
- Se me dissessem que ali em baixo estava uma fortuna, à minha espera, para ser minha se eu para lá corresse, eu não apressava o passo... Não! Não saia deste passinho lento, prudente, correcto, seguro, que é o único que se deve ter na vida.
[...] E ambos retardaram o passo, descendo para a rampa de Santos, como se aquele fosse em verdade o caminho da vida, onde eles, certos de só encontrar ao fim desilusão e poeira, não devessem jamais avançar senão com lentidão e desdém.
[...] Então Carlos, até aí esquecido em memórias do passado e síntese da existência, pareceu ter inesperadamente consciência da noite que caíra, dos candeeiros acesos. A um bico de gás tirou o relógio. Eram seis e um quarto!
- Oh, diabo! [...] Não aparecer por aí uma tipóia!...
- Espera! exclamou Ega. Lá vem um "Americano", ainda o apanhamos.
- Ainda o apanhamos!
Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:
- Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma...
Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras:
- Nem para o amor, nem para a gloria, nem para o dinheiro, nem para o poder...
A lanterna vermelha do "Americano", ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:
- Ainda o apanhamos!
- Ainda o apanhamos!
De novo a lanterna deslizou, e fugiu. Então, para apanhar o "Americano", os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.
É triste e é bonito. Da vida nada a desejar, pois só há desilução e poeira. Me lembrei agora de Zeca Pagodinho e seu "deixa a vida me levar". Acho que é o mesmo pensamento. O mais interessante do trecho é que os personagens fazem o oposto daquilo que advogam na filosofia. Enquanto dizem não valer a pena correr por nada nessa vida, lançam-se correndo desesperados atrás do "americano", o trem. É o recado de Eça de que há coisas, sim, pelas quais se vale correr.
Eu acho essa passagem extremamente bonita, mas não concordo inteiramente com ela (não preciso concordar, para admirar). Acho sim, que a vida é mais leve quando nada esperamos ou desejamos, mas, assim como Carlos e Ega que correm atrás do trem, também há coisas com as quais devemos continuar desejando. Eu diria que, no fim, além de desilusão e poeira, ao menos restam belas palavras, como a poesia de Eça. Como sabemos, a beleza de belas palavras é a única coisa que tenta competir com a beleza das mulheres.
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