segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Sobre méritos

Outro dia, uma amiga escreveu no twitter uma frase, à qual constestei, e me gerou algumas reflexões. Como preciso mais que 140 caracteres para expor meu pensamento, acredito que o tema rende um post. Não vou nomeá-la aqui pois aprendi com a história do "Lembre-se de Pedro" que não deve-se nomear as pessoas, se elas puderem se sentir ofendidas. Sinceramente, de coração mesmo, não estou criticando ela, nem acharia problemático escrever sua identidade (só não o faço, por que não sei o que ela acha a respeito). Ela sabe que a amo (no bom sentido, claro. fraternalmente). Mas vamos ao que interessa.
A síntese do comentário era algo como "Alguém me explica como uma empregada doméstica pode ganhar mais que um estudante de graduação? Injustiça!". Aí me veio à mente toda uma série de questões sobre "mérito". Por que alguém que se dedica a um tipo de trabalho "merece" mais do que outra que se dedica a outro tipo? Por que se têm isso como definição de justiça e assim constrói-se uma escala hierarquica do trabalho? Engraçado que frequentemente eu me posiciono contra meus próprios "interesses", mas não é por que sou universitário que devo indiscriminadamente defender os universitários. É preciso ter senso critico de auto-análise, e defender pontos que possam prejudicar a si próprio. Modéstia à parte, acho que seria um excelente parlamentar nesse sentido, pois a última coisa que penso são meus próprios interesses. Ou talvez fosse um péssimo parlamentar, justamente por isso. Hahaa. Mas retomando o tema. Não acho que um estudante, ou um comunicador, ou um administrador, ou quem for, dos trabalhos mais "elevados", seja mais "digno", ou mereça mais do que pessoas que exercem profissões humildes. Nós já tiramos tanto delas (pessoas pobres), e ainda reclamamos pelo pouco que elas têm? Nossa vida, vida de classe média, é muito mais do que privilegiada. Só de estar em uma universidade, e uma universidade pública, já demonstra que viemos de um estrato cuja vida é mais confortável. Penso que todos devem ser valorizados, e recompensados igualmente (ansia igualitária de socialista recalcado é fogo, né?). Não existe um trabalho melhor do que o outro, então por que um deve ganhar melhor do que o outro? E pior, quando alguém humilde ganha melhor do que alguém da classe média, enxergamos isso como uma aberração, uma injustiça do estado natural da coisas. Esse é um pensamento comum à nós, classe média. Mas ora, igualdade verdadeira - mais, equidade - não é tratar todos igualmente, mas tratar de forma desigual aqueles que são desiguais, na medida de sua desigualdade. Por causa desse sentido se fazem as cotas sociais nas universidades - uma medida muito elogiada de minha parte (diferentemente das cotas raciais). E por causa disso penso que, fosse para promover a justiça, os mais pobres deveriam ganhar realmente mais. Sim, uma empregada doméstica precisa mais de salário do que um estudante universitário. Então é justo que ela ganhe mais do que o estudante universitário. "A cada um na medida de sua necessidade", era o lema comunista. Reconheço que igualdade plena jamais alcançaremos, mas não custa rumar em sua direção, e defender seus principios. Veja, há um perigo maior em estabelecer que uns são melhores que outros. Pois se começarmos assim, dizendo que o universitário é melhor que a empregada, acabaremos dizendo que a raça ariana é melhor do que os judeus. Há que se ter noção que somos todos iguais.
Mas e a especialização do trabalho? Um estudante de engenharia dedica anos para aprender a construir pontes, enquanto uma empregada doméstica leva semanas, que seja meses, para aprender a limpar e cozinhar. Diante desse argumento há duas perspectivas. A primeira é que, independentemente do tempo de estudo, os dois exercem a função de igual modo, com a mesma dedicação, e o mesmo suor do corpo. Ambos tem 24 horas de vida por dia, e dedicam um xis desse tempo de suas vidas ao trabalho, que deve sustentá-los, mantê-los. Mas há outra perspectiva (que não é oposta à primeira, pelo contrário, vejo como complementar) da responsabilidade de cada um. Não podemos ir a extremos. Ambos são seres humanos que dedicam parte de sua vida ao trabalho, e portanto, devem ser recompensados, mas têm responsabilidades diversas. Enquanto uma empregada é responsável por uma casa, o engenheiro desse exemplo constrói a ponte que vai beneficiar a sociedade como um todo - e se falhar, pode projudicar muita gente. Acredito que, em certa medida, não há como deixar de atribuir certos graus. Mas nessa atribuição de graus, existe um limite tênue. Uma coisa é o profissional, outra o ser humano (sobre este, são todos iguais, independente da profissão). A linha tênue à qual me refiro é incorrer no erro, que já considero exemplar, quase clássico, de Bóris Casoy. Para quem não sabe, enquanto este apresentava o Jornal da Band o áudio "vazou" em um momento que não devia e ouvimos ele tecendo comentários sobre dois garis que apareciam no vídeo "Dois lixeiros opinando do alto de suas vassouras. O mais baixo da escala do trabalho", foi o que ele disse. O vídeo, para quem quiser ver, está aqui.
A escala do trabalho. Durkheim escreveu sobre a divisão social do trabalho, mas eu não li nem a obra, nem sobre a obra. Se tivesse lido, talvez tivesse ainda mais argumentos para fundamentar minha opinião, ou outros horizontes a debater, como não é o caso, vale o registro que já existe um pensamento classico a respeito,  muito respeitado. Em sintese o que penso é que às vezes não temos como não atribuir responsabilidades, e inevitavelmente valorizar mais uns profissionais que outros, mas acho que devemos resistir ao máximo possível quanto à hierarquização de uns serem melhores que outros ou merecerem mais que outros. Primeiro, por que todos somos seres humanos, e nossa vida é determinada pelas condições que nos são dadas. Segundo, por que não existe "mérito", isso é apenas uma classificação criada socialmente, para atrubuir valor, para separar e selecionar. Às vezes, recorremos a isso - afinal, como fazer uma seleção de candidatos (a um emprego, a qualquer coisa) sem implicar um critério que inevitavelmente leve a "mérito"? Mas uns não merecem ganhar mais que outros. Fico realmente feliz de saber que uma empregada doméstica está ganhando bem. Acho que o comunicador também deveria ganhar bem, claro! Ambos merecem ganhar bem. Mas se nós passamos numa universidade e estamos nela, não foi de forma alguma por mérito. Não suamos, não estudamos, e não merecemos estar nela. As condições que nos foram dadas simplesmente foram diferentes, bem diferentes, das condições dadas à empregada doméstica. "É fácil estudar, quando não se passa fome" não me lembro quem disse essa frase, acho que foi o Lula ou o Cristóvam Buarque, mas não tenho certeza. Eu mesmo, dois anos atrás, era muito diferente, me achava "merecedor", mas hoje percebo isso. Nenhum de nós "merece" estar na universidade (esta é um exemplo, que pode ser generalizado para trabalho, posição social, etc e etc). Mas uma vez que estamos, devemos dar valor a isso, e olhar pelos outros, que não tiveram a mesma "sorte" que nós. Não por que merecem menos, por que se dedicaram menos, por que são menos capazes, esforçados ou inteligentes, mas por que as condições que lhes foram dadas foram, simplesmente, diferentes. "Os homens fazem histórias, mas somente dentro das condições que lhes são dadas", Karl Marx.
Mas então pode-se incorrer no pensamento de que "eu não me importo que os outros não tiveram as mesmas condições; quero saber de mim". Bom, pra isso, não tenho muitos argumentos, só acho que alguns dos principios do cristianismo perpassam a tudo. Somos irmãos, e responsáveis pelos nossos irmãos. Para quem tiver um pensamento como o que pressupus, apenas acho que devemos ser menos egoistas. Não digo que todos devemos nos libertar dos interesses pessoais e materiais, afinal, nem todos podemos ser figuras como Madre Teresa, mas a vida não é feita de extremos. Podemos rumar em direção à solidariedade, e isso começa olhando ao nosso redor.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Por que não gosto da teologia da prosperidade

Eu não gosto da teologia da prosperidade. Procuro respeitar, acredito que cada um tem sua fé, e enquanto fé individual, diz respeito apenas àquela pessoa. Procuro ser o menos etnocentrico possivel. Mas não gosto da teologia da prosperidade, enquanto principio filosófico de fé.
A teologia da prosperidade, para quem não sabe, é o principio no qual se assenta as igrejas neo-pentecostais, tal como a Igreja Universal, do bispo Edir Macedo, e a igreja do R.R.Soares, que sinceramente não lembro o nome. Em sintese, e cito de cabeça pelo que sei, com minhas palavras (provavelmente no papel, na teoria, deve ter nuances diferentes), essa teologia defende que o ser humano, o crente em Deus, deverá ser recompensado em terra pela sua bondade. Recompensado materialmente. Deus é o senhor do mundo, de todas as riquezas, e nós, como seus filhos, temos o direito a usufruir essa riqueza, em vida. Os homens bons e retos de Deus terão sua recompensa (saúde, riqueza, etc) em vida. Não gosto, essencialmente, por corromper toda a idéia básica do cristianismo (não só da igreja católica, mas do cristianismo) de humildade. As pessoas que vão as essas igrejas adotam uma postura "utilitalista" (estou usando a palavra no sentido geral; não o conceito sociológico de utilitalismo, que reconheço não conhecer bem). O que quero dizer: elas esperam uma recompensa. Vão à igreja para fazer pedidos, e esperam ser recompensadas por sua fé. Se devotam à Deus para ter casa, carro, saúde... Chega a ser engraçado ver esses cultos, baseados inteiramente em "pedidos", para que Deus mude suas vidas, etc e tal... raro ver a louvação pela louvação. Então, surge os testemunhos, pessoas que passam pelo palco (palco, é esse mesmo o termo que quero usar) dizendo que Deus mudou suas vidas, que antes não tinham nada, mas agora a empresa está prosperando, o casamento está dando certo, o filho saiu das drogas, conseguiu emprego... Chega a ser uma palhaçada (com todo respeito a quem acredita). Fé verdadeira independe de provas materias e concretas (por que aí é ciencia), e independe de recompensas (por que aí é interesse). Fé, é quando tudo está dando errado e você ainda acredita. E também tem a questão da riqueza material. Não sou teólogo, nem especialista em religião, mas no meu entender, o cristianismo se baseia na humildade, na devoção, e na pobreza. Se em algum momento da biblia (não sei exatamente onde) Deus diz que é mais fácil o camelo passar pelo buraco da agulha do que um rico entrar no céu, e por mais que isso seja uma metáfora, uma parábola, como podem todos os "verdadeiros crentes" querer ser ricos? Raramente citaria um filme para embasar alguma tese minha, mas gosto de "A Última Cruzada", do Spielberg. Lá no final, quando devem adivinhar qual é o cálice sagrado de Jesus, o nazista escolhe o cálice de ouro, cheio de diamantes, que diz ser "digno do filho de Deus", toma e morre. Indiana Jones escolhe o cálice de barro, aburdamente simples, e nele está contida a salvação e a vida eterna. Ou seja, Jesus é humilde, porra!
Outra coisa que não gosto dessas igrejas neopentecostais (procuro deixar no genérico, para não dizer que é preconceito, mas a Universal é a representante-mór dessa corrente que critico) é o espaço que abre para enganações. Enganação dos fiéis, por parte da igreja. Coação psicológica, para que doem dinheiro. Sempre o dinheiro, sempre o material. Minha amiga Julhy fez uma excelente etnografia no ano passado a respeito do tema, para a disciplina de antropologia da Valéria. É um tema muito fértil. Me lembro de que um tempo atrás tinha que fazer hora, para um compromisso, e não tinha o que fazer. Estava passando em frente ali na avenida sete de setembro, e resolvi entrar e ver parte de um culto na igreja Universal, para fazer hora. Me impressionou a desonestidade intelectual (ou pode-se chamar de mentira, mesmo) do pastor lá na frente. Ele estava fazendo campanha política, literalmente. Ah, se a justiça eleitoral soubesse e fizesse algo... Dizia que o senador não-sei-quem era "nosso representante" lá no congresso, que estava lutando pelos interesses da fé de Deus. Em certo momento disse "Ou algum de vocês gostaria de ver o pastor aqui realizando casamento de duas pessoas do mesmo sexo?" E a platéia em unissono "Não!". E começeu a dizer que era para defender a posição da igreja q o senador estava lá em Brasília, por que "eles estão querendo aprovar isso aí, casamento de duas pessoas do mesmo sexo, e se for aprovado, o pastor aqui não vai poder se negar a realizar, por que senão é discriminação (em tom ironico)". Afora o preconceito contido na frase (sobre esse nem vou falar nada, por que um dia ainda vou escrever a respeito do que eu penso sobre o preconceito em si), é intelectualmente desonesto, ou seja, mentiroso. A proposta de lei diz respeito a isso: leis. Se um dia for aprovada essa lei, dirá respeito ao casamento civil. Nenhuma lei pode versar sobre principios de fé ou sobre doutrinas religiosas. Nunca que uma igreja seria obrigada a realizar casamentos gays, se não quisesse, se fosse contra sua doutrina. Provavelmente o pastor sabe disso, mas manipula as palavras, mente, para iludir os fiés, que provavelmente não tem conhecimento sobre leis.
Mais uma coisa que não gosto nessas novas igrejas (já estou falando contra as igrejas em si, não somente contra a doutrina de fé - faço muito isso, me desviar do assunto principal) é sua indefinição quanto à história e personagens e fatos da história. Por exemplo, outro dia estava dando uma lida num livro de Agostinho, sim, Santo Agostinho. Aí pensei, o que diria a respeito a igreja Universal? Elas negam tudo que é próprio da igreja católica, mas existem certos personagens da história que estão intimamente ligados à igreja católica. Santo Agostinho, por exemplo, é apenas mais um. Santo da igreja católica, mas também de extraordinária importancia para a filosofia, construtor  de toda a interpretação biblicia que em parte se têm até hoje. Sinceramente, não sei a posição delas quanto à Agostinho, se é que existe essa posição. Mas você não pode ignorar a história, então acredito ser complicado o sentimento de "novo messias" que tentam criar, como se fossem os salvadores, e os outros todos estivessem errados.
Esses são só alguns dos principais argumentos; poderia escrever bem mais a respeito, mas sinceramente, acho que não vale a pena. Curioso que essa é a única corrente religiosa com a qual tenho certo ressabiamento. Mas que fique bem claro, não gosto do pensamento nem da prática adotada pela igreja, mas nada tenho contra os fiéis. Se você é um deles, respeito plenamente você e seu direito em crer no que quiser. O que é outro ponto contra essas igrejas: estão sempre em luta contra alguém, querendo ser os "certos", negando e criticando outras religiões, como a católica ou a espírita, como se fossem "erradas". Talvez , além de respeito com o outro, lhes falte ler um pouco de Foucault: não existe verdade, apenas discursos de verdade.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Sobre Ciro Gomes

Outro dia o Leandro Fortes, jornalista que mantém o blog "Brasília, eu vi" (aqui) e escreve para a Carta Capítal, escreveu em seu twitter: "Definitivamente, a imprensa não está preparada para o jeito franco de Ciro falar. Ainda mais na Câmara, onde tudo é teatro e hipocrisia" e em outro tweet: "Dá pena ver o nervosismo dos repórteres mais novos diante das marteladas de Ciro.". Me lembrei de um assunto que gosto muito: Ciro Gomes. 
Existem quatro homens que admiro no Brasil, acima de qualquer suspeita. Se eu, sozinho, pudesse escolher quem seria o próximo presidente da república, qualquer um deles seria um opção mais do que satisfatória. Dois, desses quatro homens, admiro essencialmente por sua liderança carismática, como definiu Weber. Um já é o presidente da república, induvidavelmente Lula, e outro é o Requião. Outro, admiro pela sua capacidade intelectual e seu senso de moral e correção, é Tarso Genro. O último desses quatro homens consegue ser uma sintese dos outros. Inteligentissimo, mas não acadêmico, humilde, apesar de não pobre, e sem medo de comprar brigas e dizer o que pensa. Uma pitada de Tarso, de Lula e de Requião. Trata-se de Ciro Gomes.
Já há muito o admiro, mas acredito que tudo se consolidou (ou se reforçou) no 2º semestre do ano passado, em uma entrevista ao Canal Livre. Considero essa entrevista uma das obras mais incriveis que já vi, é IM-PE-CÁ-VEL. Não há o que melhorar. Ciro mostra postura não de candidato, mas de Presidente. Não apenas de chefe de governo, mas de chefe de Estado. Não se deixa pressionar pelo time de perguntadores, quando um tenta atropelar a pergunta do outro, os controla, na palma da mão. Não deixa nada sem responder. Ele tem a humildade de Lula, sua solidariedade pelos mais pobres, a busca por olhar para as desigualdades sociais, ao mesmo tempo que demonstra a inteligencia digna de quem fez pós-graduação em economia em Havard (formado em Direito, na universidade do Ceará), e para responder uma pergunta cita Gramsci! Um político, citando Gramsci, num programa de TV! É incrivel! E não tem receio de dar respostas "desaforadas" a um dos jornalistas, sobre uma questão qualquer, dizendo para ele: "Vá pesquisar, é o seu trabalho".
O melhor de tudo, é que não é um raro momento numa rara entrevista. Ele é assim, sempre. Desbocado, inteligente, humano. Quer Presidente melhor? Ah, e o pacote ainda acompanha a Patricia Pilar como primeira dama. Hahaa. É uma pena que talvez ele nem saia mesmo candidato, é uma pena que caso saia, suas chances são pequenas. Acredito, sinceramente, e por muitos motivos, não apenas pelas qualidades que adimiro, que ele seria o sucessor perfeito para Lula.
Ciro Gomes seria o sucessor perfeito para Lula. Por que? O governo Lula é reconhecidamente bom, muito bom. Vamos partir desse pressuposto, que é o que os niveis de satisfação indicam como percepção da população, é o que os indices economicos indicam, é o que os niveis sociais indicam. Até aqui é a maldita estatística, não minha opinião. Partindo do pressuposto que o governo Lula é bom, e que o modelo de gestão da oposição (José Serra) baseia-se no oposto do modelo do Lula, pode-se dizer que a oposição é ruim, e que não se quer a volta da oposição ao poder. Explicando melhor. O PSDB defende posições liberais em relação ao Estado, o que significa que o Estado deve abster-se, não fazer nada, ou o mínimo, e deixar as coisas por conta da iniciativa privada, das forças de livre mercado, pois estas gerariam o bem comum, na formulação de Adam Smith. A posição mais à esquerda acredita e defende um Estado forte, que assuma certas responsabilidades (como educação pública e auxilio aos pobres), e tenha posição de incentivador do mercado. Foi a posição do governo Lula de incentivador do mercado, com linhas de créditos, etc e tal, que fez com que a temida crise economica não passasse realmente de uma "marolinha". Qual está certo? Nenhum. Em Ciencias Sociais e Humanas, não existe Verdade. Apenas posicionamentos ideológicos e filosóficos. Cada um acredita no que quer (por isso amo as humanas!). Eu acredito que o modelo de Lula é melhor e mais eficiente, e como está dando certo, e ele é aprovado por 80% da população, vou partir do pressuposto que a população concorda comigo, até aqui. Então não é bom Serra ganhar. Então, tem Dilma, candidata de Lula. Ela é uma excelente ministra, acredito que seja competente, mas...  Mas como comentei um tempo atrás, com alguns amigos, não ficaria totalmente triste se o PT perdesse essa eleição. Deixa eu explicar! Gosto do PT, e numa eventual disputa DIlma x Serra, claro que prefiro a Dilma. Ficarei triste sim, se o PT perdesse para o Serra. Não pelo PT (e já vou explicar porque isso) mas pelo Brasil, pelo retrocesso que o país teria numa gestão tucana - sobretudo na política externa. E por que não ficaria triste pelo PT? É preciso refrescar o poder. A democracia pressupõe alternancia; não que governos seguidos façam algum mal à democracia (nos EUA, democratas já governaram por décadas seguidas). Mas para o próprio partido, para não ter sua imagem desgastada, é importante mudar os ares, refrescar-se, longe do poder, para no futuro retornar a ele. Manter-se muito tempo, ou indefinidamente, no poder não faz bem a um partido. Se Serra ganhar seria um desastre para o país, e se tb seria "bom" o PT refrescar-se do poder, qual a solução? Chama-se Ciro Gomes. Ele foi ministro da Integração Nacional no 1º governo Lula, e abertamente confessa sua adimiração pelo Presidente Lula. Mas ao mesmo tempo, sendo de outro partido (PSB), representa novas idéias, novos rumos. Ciro Gomes seria uma forma de dar continuidade ao governo Lula (pois certamente seria seu aliado) podendo refrescar o poder do PT, que iria para a base aliada no congresso. Refresca-se o poder, ao mesmo tempo que continua o governo, mas com novas idéias. Por isso acho que Ciro Gomes seria o próximo presidente perfeito. Ciro tem aquilo que Aécio Neves tentou se definir como "pós-Lula". Alguém que admitisse a importancia de Lula na história, mas olhasse para o futuro. Dilma é a "pró-Lula", sua continuidade. Serra é o "anti-Lula" (por mais que vá tentar parecer que não, no horário eleitoral), sua antitese e oposição, que acha que tudo está errado. Ciro teria condições de dar um passo à frente no debate. Poderia olhar para trás, dizer sobre a importancia de Lula, mas superar as rusgas partidárias e construir o futuro, sob as bases alicerçadas pelo PT. Ele também representaria a alternancia de partido dos últimos 16 anos dominados pela dupla PT-PSDB. O seu PSB poderia atrair, com propostas, até certa ala do PSDB. Amigo de longa data de Aécio Neves (com rara sinceridade que se vê na política - são realmente amigos!), Ciro como presidente poderia atrair tanto PT e PSDB, numa união por propostas para o país. Pareço um pouco utópico? Em certa medida, sim, com certeza. Mas o dia que não tivermos mais sonhos e utopias...

Ainda sobre a moral e religião

Um tempo atrás, bastante tempo, logo nos primeiros posts desse blog, publiquei uma carta (também chamada e-mail) que enviei ao Carlos, com alguns questionamentos sobre Moral e Deus. Ele publicou a resposta no blog dele. Agora, encontro, por acaso, vídeo no youtube que segue um pouco na discussão dos meus questionamentos. É um programa de TV (estilo BBC), dividido em seis partes. no youtube, chamado The God Question (A Questão de Deus). O link da primeira parte (a mais interessante) é este: http://www.youtube.com/watch?v=ymjuxVPBZYc&feature=rec-r2-2r-4-HM (você pode acessar as outras através dessa). 
Pena que não tem legendas, e a linguagem academica em ingles não é totalmente compreensivel (se às vezes nem em portugues a linguagem academica é compreensivel.. haha). Mas dá pra pegar a essencia da discussão. Questões sobre se criamos Deus para referendar nossas concepções de moral, ou se a moral é um dom divino, e a necessidade de estabelecer um "ente" maior, garantidor da retidão do comportamento. Uma vez que os valores são apenas isso, valores, qual a diferença da moral cristã, ocidental, para a moral nazista? Os fundamentos sob os quais se fundamenta as concepções de Deus. Tem algumas partes chatas, e outras estranhas (a explicação de Freud para o cristianismo - o sacrificio de Jesus é o desejo supremo de matar o pai - é exdruxula; da qual discordo), mas, de todo modo, interessante.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Exercitando Literatura/Ficção (3) (Ou "história da vida")

Borges, lembra-se sempre Marina. Foi com Borges que Walter a conquistou. Estavam numa festa quando se conheceram, ele puxou papo, e ela disse que gostava de poesia, de Borges. “Jorge Luis Borges, é tocante”, ele emendou. Ela apaixonou-se naquele momento. Pediu um minuto e correu para contar, eufórica, para Marli, sua melhor amiga “Ele conhece Borges, ele conhece Borges!”. Não, ele não conhecia Borges, mas enganava muito bem. O papo deslanchou, e no dia seguinte se viram de novo. No primeiro fim de semana ele a levou ao cinema, e depois a levou para sua casa. “Não faz nem uma semana que nos conhecemos...”, disse ela, voz melosa, enquanto ele beijava impaciente seu pescoço e descia pelo seu ombro, as mãos esforçando-se em se desvencilhar de suas roupas. “Vai ser bom, prometo”. Ele é seu primeiro, mas ela não era a primeira dele. Os encontros tornaram-se freqüentes e a coisa ficou séria. Ela engravidou, e se casaram pouco tempo depois. Ambos aceitaram a situação tacitamente, era cômodo para eles.
"Ah, isso já faz tanto tempo" – resmunga Marina, ar pesado na voz. – "muitos anos".
As crianças correm pela casa enquanto Marina tenta preparar alguma coisa no fogão. Waltinho tem 11 anos e Luisa Maria tem 8 anos. Luisa Maria era o nome da avó de Walter e ele insistiu no nome, mesmo Marina não gostando, por que havia feito uma promessa. Marina acabou cedendo. É raro eles receberem alguém em casa, fora os amigos de futebol de Walter, mas vez por outra vem visita. Marli veio jantar na casa de Marina esta noite, e era isso que Marina se esforçava em cozinhar, enquanto tentava controlar as crianças. Marli era a melhor amiga de Marina, mas fazia muito tempo que não se viam, desde que Marli se casou com um estrangeiro e agora vivia viajando o mundo, junto com o marido, que ia a negócios. À noite, os dois casais jantaram. Marli elogiou Marina, disse que estava bonita. Marina sabia que era mentira, que era só gentileza de sua antiga amiga. Walter deu pulos na cadeira quando viu o jantar “Ah, hoje vamos ter comida boa. É a única coisa boa de receber visitas”. Marli não disse nada, por não saber o que falar. Marina acenou com a cabeça, pela falta de jeito e compostura do marido. Walter começou a contar para o marido de Marli como conquistou Marina falando de Borges, mesmo sem conhecer o dito-cujo. Ele sempre contava essa história para as pessoas, e ela odiava! “Não precisa ficar contando como você me enganou, está bem?” Mas Walter continuava “Eu ia ouvindo o que ela falava do tal João Luis Borges, e depois repetia..”. “Jorge!” – deu um grito Marina – “Jorge Luis Borges. Ao menos o nome fale direito!”. Marli percebeu que estava na hora de sair, despediram-se, beijinhos, promessas de se verem com mais freqüência.
Walter e Marina não eram felizes juntos, mas provavelmente também não seriam felizes separados, então deixavam a coisa continuar. Era cômodo. Walter continuava enganando Marina. Começou enganando com Borges, e agora enganava com outras mulheres. Marina sabia, sentia sem querer o perfume nas roupas dele, via as marcas de outras mulheres, mas não se importava; era indiferente. Borges também era indiferente, nunca mais lera poesia. A poesia não fazia mais sentido para ela, não lhe tocava mais. Estava adormecida, para a traição, para a poesia, para a vida. Continuava vivendo, sem viver. Certo dia, pegou Luisa Maria com um antigo e amarelado livro seu de poesias, se esforçando para lê-lo. "Onde você achou isso, menina?"; "Jogado por aí, nas suas coisas, mamãe, junto com as fotos antigas da vovó.". Marina tomou-lhe o livro da mão, dizendo que aquilo não prestava, e que não servia pra nada. Jogou o livro na lixeira da cozinha, em meio a restos de cascas de frutas e outros alimentos. Sentou-se na sua cama, em meio aos bichos de pelúcia. Bichos de pelúcia. Era a única coisa que ainda tocava ela. Meio infantil talvez, mas talvez fosse mesmo a tentativa de se apegar à sua infância, à outros tempos. Tinha muitos, espalhados pela cama, pelos cantos, pelo chão do quarto, vários tipos, tamanhos, cores... Walter odiava aquilo, dizia que só ocupava espaço e juntava poeira. Mas era a única coisa que ainda fazia Marina saber que estava viva. Num rompante, voltou à cozinha e pegou o livro amarelado da lixeira, limpando-o com as pontas dos dedos, e abriu numa página aleatória. Era um poema chamado "elegia da lembrança impossível", que falava sobre a memória, as lembranças e como ele se sentia consigo mesmo e com a situação do hoje. Nada fez mais sentido para ela, como no passado fazia. Jogou o livro de volta no lixo. Voltou para seus bichos de pelúcia.
Certo fim de semana, Marina foi visitar os país, que agora moravam no interior. Foi no sábado, com a promessa que voltaria domingo à noite. "Você vai ficar bem? Sabe se virar com a comida? Não quer mesmo vir junto?", "Não, não, fique tranquila, Marina. Vou ficar por aqui, chamar o pessoal pra ver o futebol domingo, beber umas cervejas". Marina foi. E voltou domingo à noite, como combinado. Segunda, Walter trabalhando, crianças na escola, e Marina na solidão de sua casa. Ao menos tinha seus bichos de pelúcia como companhia. Seus bichos de pelúcia, ah, seus bichos de pelúcia. Batom. Seus bichos de pelúcia manchados de batom, com cheiro de mulher. Seus bichos de pelúcia! Não se importava com quantas mulheres Walter a traísse, mas seus bichos de pelúcia..  Seus bichos de pelúcia!!! Aquilo lhe despertou alguma coisa, não sabia bem o que, que sentimento era aquele...  era raiva, toda a raiva e a frustração de sua vida contidas. Finalmente algo conseguira canalizar aquilo tudo. Estava viva, enfim. Sorriu, por que ainda era capaz de sentir. Sim, sentia, e estava viva, tinha sentimentos. Ela escolheu um bicho, o que tinha a marca de batom mais visível, e o guardou, embalado num saco plástico, como um troféu, como uma lembrança que era capaz de sentir. Os outros lavou. Primeiro lavou em casa, repetidas vezes, depois mandou lavar, e depois relavar, noutra lavanderia, sim, agora já deviam estar limpos, depois de muitos dias lavando e relavando. Eram novamente seus bichos de pelúcia, mas aquele um ficou guardado, longe da vista de Walter. Não falou nada com Walter, mas pensou, pensou o que poderia fazer.
Depois de pensar muito chegou a conclusão que também devia trai-lo, já que era o que ele gostava de fazer. "Mas como vou arranjar alguém para trai-lo?", pensou, e pôde imaginar o que Marli teria dito, se estivesse ali "Ah, minha filha, isso você vai ver que aparece fácil". O imaginário conselho de Marli estava certo, e Marina encontrou fácil homens dispostos a uma aventura sem compromisso. Um, dois, muitos... O primeiro dia que saiu determinada a fazer isso, arrumou-se como há muito não fazia. Mudou o cabelo e colocou um vestido decotado que lhe favorecia muito. Nunca havia traido Walter, nunca tinha feito amor com outro homem. A primeira vez foi estranho, diferente de Walter, não sabia direito o que fazer. A segunda vez foi melhor, bem melhor, muito bom. E nisso ela estabeleceu uma rotina, uma rotina de traição. Todos os dias. Experimentou coisas novas, e gostou. Certo dia, resolveu levar um rapaz para sua casa. Queria fazer sexo na cama deles, que Walter a tinha traido. Achegou-se aos bichos de pelúcia. Abraçava seus bichos de pelúcia enquanto aquele homem a penetrava, e sentiu uma coisa que nunca havia sentido antes, uma coisa incontrolável. Tivera múltiplos orgasmos naquela tarde. O rapaz ficou impressionado com o vigor dela, e ficou com o ego inflado, achando ser por causa de seu desempenho. Tornou-se rotina ela levar homens para sua casa. Repetia os caras, mas gostava mesmo de novidades, de variar. Certo dia pensou "Que graça tem, se o Walter nem sabe? Talvez até desconfie, mas ele não sabe". Assim, no dia seguinte deu orientações às crianças para irem pousar na casa de um dos amiguinhos, com uma desculpa qualquer. Chamou um de seus preferidos para ficar até mais tarde, que a casa estaria livre. A casa não estaria livre, na verdade. Marina e o amante estavam no quarto, em pleno ato, no finzinho de tarde em que Walter chegou. Ouviu os gemidos e foi para o quarto. Viu o homem sobre sua esposa, ela de frente para a porta, já esperando por ele, para olhar-lhe os olhos enquanto era comida. Marina olhou nos olhos de Walter enquanto era comida e sorriu. Walter saiu, voltou para a sala, impassível e sem esboçar emoção, sentou-se no sofá, e ligou a televisão.  Walter tinha uma relação com o sofá como Marina tinha com seus bichos de pelúcia; era a única coisa que ainda lhe dava algum prazer - sua vida era tão anestesiada quanto a dela, mas ninguém nunca percebeu, nem mesmo Marina. Passava um programa policial. Deixou no canal, para ver os crimes e atrocidades do dia. Que barbaridade de mundo! Marina pensou em ir atrás de Walter para saber sobre sua reação, estava curiosa, mas terminou o ato antes, para ferir mais Walter. Mas ela não conseguia ferir Walter. Ela gemeu alto, gozando de prazer, como nunca havia feito com Walter, e ele, impassível, assistindo o programa policial na televisão. Terminaram, e ela acompanhou o homem até a porta. Passaram pela sala e por Walter, vendo TV. Ela, de hobby novo, sensual e transparente, sentou-se ao lado dele no sofá. "Tá bom o programa?", Marina perguntou, sem mais o que dizer. Walter acenou com a cabeça. "Não diz nada?", perguntou Marina. "Eu comi uma garotinha de 20 anos agora pouco, antes de vir pra casa. Você sabe disso... Você também tem direito. Por mim, tudo bem", "Tudo bem eu trepar com outros homens?", "Sim, eu também faço isso...  quer dizer, com mulheres, claro". Marina saiu para o quarto, sem saber o que dizer ou qual reação ter diante da situação, a apatia voltando a dominá-la, enquanto Walter gritava da sala para ela poder escutar no quarto "E a janta, cadê?"
Não se falou mais nisso, depois. E a vida continuou. De raro em raro, ele procurava ela, à noite, entre os lençóis. Ela ficava inerte, como uma morta. Ela fazia seu trabalho, e parecia nem perceber que ela não estava ali, realmente. Pareciam os dois mortos, a bem dizer da verdade. A vida voltou a ser o que sempre foi, o que na verdade, nunca deixou de ser. Marina ainda saia com homens à tarde, mas ao poucos foi parando, não via mais graça naquilo, não via mais graça em nada. Walter continuava distante, ausente, como sempre, como se não existisse. A relação de ambos com as crianças também era mecanica. Marina não amava os filhos, e sabia disso. Eles lhe eram indiferentes. Ela cozinhava, lavava roupa, dava de comer, de vez em quando falava amenidades, mas não tinha uma relação, eram como cães distantes, de rua, que ela cuidava. Não, não, pelos cães as pessoas sentem amor, então eles não eram como cães não. Eles eram apenas mais um compromisso, indiferente. Para Walter também, bem, Walter nunca estava lá, mesmo quando estava lá, Walter não existia... Nisso as crianças cresceram sozinhas, tomando conta de si mesmas. Eram como órfãs, mas com pai e mãe e casa. O tempo passou, e tudo continuou na mesma, como sempre foi. O tempo passou mesmo? Parece tudo tão igual...  As crianças também cresceram, e por serem orfãs, se tornaram amigas. Foi Luisa Maria que deu as dicas para Waltinho conquistar sua primeira namorada, sobre os gostos de uma menina, e quando Luisa Maria menstruou pela primeira vez foi Waltinho que lhe acalmou do susto, e, pegando dinheiro do esconderijo do pai, marcou uma consulta com o médico para lhe explicar o que tava acontecendo. Cresceram sozinhas, as crianças. Brigavam também, e elas mesmas tomavam a iniciativa de se reconciliar - se não o fizessem, ninguem mais faria. E nisso foram crescendo. 
Um dia, Marina estava arrumando o guarda-roupa e caiu um saco-plástico. Havia muito tempo não via aquele saco plástico, bem lacrado e escondido. Era um bicho de pelúcia com batom de uma das amantes de Walter. Fazia tempo Marina não colecionava mais bichos de pelúcia. Eles continuavam jogados por ali, por pura indiferença, mas ela não nutria mais nada por eles. Pegou alcool e foi para o quintal. Resolveu queimá-lo. Ficou vendo ele arder, com o batom que um dia fez ela sentir alguma coisa, mas que não fazia mais. Foi quando percebeu nem mais os seus bichinhos tinham algum efeito sobre ela. "E se eu queimasse todos?", pensou. Buscou todos no quarto, juntou um por um. Teve que fazer várias viagens do quintal ao quarto, mas estavam todos ali, numa pilha. Pegou mais alcool, e caprichou, não ia querer que algum escapasse. Riscou o fósforo e ateou fogo naquilo que um dia foi a única coisa que ainda a lembrava que era um ser humano de emoções. Sorriu, os olhos brilhando, ao ver as chamas de tantas pelúcias. Voltou ao quarto, fez uma mala, com apenas algumas mudas de roupa, e parou. Olhou ao redor, como que se despedindo, se preparando para partir. Pegou o dinheiro de Walter do seu esconderijo - que esconderijo mais fajuto, todo mundo sabia onde era! - e partiu. Não havia mais nada que a prendesse naquela casa. Nem por um instante pensou nas crianças. Crianças? Nem isso eram mais, há muito tempo, desde que perderam pai e mãe, desde que nasceram. Walter chegou a noite e Marina não estava. Não se espantou, há muito já esperava por isso.
A vida de Walter continuava igual, sem Marina. Era como se ela fosse indiferente, como também ele era indiferente. Agora era Luisa Maria quem cozinhava, e odiava isso! Parecia ter sido a única coisa que mudou. Algum tempo depois, a mãe de Marina bateu na porta de Walter. Sabia que do que aconteceu, mas não sabia de sua filha, sumira no mundo. Ela viera para levar as crianças, como ainda as chamava. Esperava enfrentar a resistencia de Walter, e estava pronta para brigar, mas ele só acenou com a cabeça que sim, podia leva-las para...  nem sabia para onde, mas podia levá-las. Waltinho e Luisa Maria estranharam a mudança, do nada, mas aceitaram a situação. Fizeram as malas, e foram embora com dona Egê naquela mesma noite. Enquanto esperava as crianças arrumarem suas coisas, dona Egê ficou em pé, na sala, apenas observando com estranheza o modo como Walter apenas ficava lá, impassível, sentado no sofá frente à TV. Naquela noite passava um programa sobre música, com calouros que eram candidatos a cantores. Qualquer coisa que passasse estava bom. As crianças e a sogra se foram. Waltinho nem se despediu; Luisa Maria ainda deu um beijo no bochecha do pai, sussurrando um "tchau, pai", enquanto ele parmanecia sentado no sofá. Dona Egê mesmo fechou a porta ao sair. Walter não se levantou. 
Walter lentamente se afundaria naquele sofá. Passou a dormir nele, nutria por ele uma relação quase religiosa, quase carnal. Ele o entendia, pois ele era confortável, acolhia seus ossos, já moldado às suas formas, como se tivesse sido feito para ele. Saía de manhã para trabalhar e voltava à tardezinha. Largara de lado as amantes. Não havia mais proposito nas coisas, se é que um dia houve. Houve quem ficasse, na casa de dona Egê, preocupado com Walter; podia querer se suicidar, alguem disse. Mas Walter não iria se suicidar. Não tinha disposição para isso. Seria um ato de sentimento, e Walter não sentia. Estava paralisado, e continuou na sua vida cotidiana, tal qual nada tivesse ocorrido. Algo poderia ter sido diferente? Já velho ficou doente, e levaram ele para um asilo, onde passou seus últimos dias. Morreu sozinho, como viveu. Não se soube mais noticias de Marina. Dizem, à boca pequena do interior, onde moram as crianças agora, que caiu na vida, numa dessas cidades grandes por aí. É, caiu na vida sabe, se deitava com homens para sobreviver. Que barbaridade de mundo! Mas também contam que não durou muito nessa vida. "Pareci ixageru o módi comu nóis conta" - relata um caipira do interior - "mais no fundo é verdadi. Sempre tem uns fundi de verdadi, por detrais das históia". Marina era bonita, não deslumbrante, mas bonita. Mas existe o tempo. Com o tempo, dizem, não conseguiu mais fazer aquilo para ganhar a vida. Contam que se envolveu com todo tipo de drogas, em busca de experiencias que a fizessem sentir. Sentir, éra o que desejava Marina, depois de tanta anestesia. Ficou eufórica quando conheceu a maconha, viu um monte de bolinhas cor de rosa piscando para ela quando conheceu a cocaina, e já não podia viver sem o crack. Era o que fazia ela viver. Teve algumas grandes experiencias nas drogas, mas em pouco tempo não faziam mais efeito, não sentia mais. Isso é só o que dizem, lá no interior. Mas sabe como é o interior, né? Um dia dona Egê recebeu um telefonema, que era para reconhecer um corpo. Parece que as histórias no fim eram verdade. Dizem, morreu  num hospital não se sabe bem de que relacionado com as drogas, gritando de dor. Sentindo, enfim, alguma coisa.
As crianças cresceram cuidadas por dona Egê e brigaram. É inevitável, irmãos brigam. Luisa Maria não gostava do mato, como chamava a fazenda de dona Egê. Não era bicho para viver no mato, dizia. Um dia, tentou fugir de casa, mas não conseguiu ir longe. Odiava aquela casa e sonhava em ir embora, de volta para a cidade. Envolveu-se cedo com os rapazes. Muitos rapazes, do mato, da cidade, rico, pobre. Waltinho brigava com ela por causa disso. Com 16, ficou grávida de um caipira. Era mais caipira que os caipiras com quem morava, como chamava sua familia, mas resolveu se casar com ele. Tudo para abandonar aquele lugar, aquelas pessoas. Waltinho gritou com a avó, numa briga séria, nessa ocasião. Prevera que iria acontecer com Luisa Maria a mesma história da mãe, e que Egê estava vendo aquilo tudo acontecer denovo, e não fazia nada. Dona Egê dizia que se era vontade da menina, como ela podia impedir? "Talvez seja mesmo você a maldita. Amaldiçoou a vida de sua filha e agora vai amaldiçoar a vida da minha irmã" - acusou Waltinho à dona Egê. A única coisa que Waltinho conseguiu foi arrancar secretamente lágrimas de dona Egê, culpando-se pelas tragédias familiares. Rapidamente, coisa de dias, Luisa Maria casou com seu caipira e foi embora de casa. Done Egê não foi mais a mesma. Pouco tempo depois morreu, dormindo. De tristeza, dizem. Waltinho  e Luisa Maria herdaram a fazenda, mas não valia grandes coisas. Como Luisa Maria já tinha seu lar, não se incomodou em deixar para Waltinho sua parte, na tentativa de estabalecer uma reconciliação com o irmão. Waltinho aceitou, mas não voltou falar com Luisa Maria. Waltinho vendeu a pequena fazenda pelo pouco que valia, pegou o dinheiro e foi embora daquele lugar. Ele, que nunca se importou com o lugar que morava, foi, enquanto a irmã, que durante tanto tempo quis sair dali, ficou. Luisa Maria mora num sitiozinho pequeno, humilde, e - o que não faz o amor - em pouco tempo aderiu totalmente à vida no campo. Se é feliz? "Sei não o que é isso. Assim, aqui a gente não fica pensando sobre essas coisa não. Aqui é bão; tem pão, tem leite, tem meu marido e  minha filha. Tô contente demais, sô. Se isso é felicidade então eu sô". Luisa Maria teve uma filha. A batizou de Marina, o nome de sua mãe, que é por que se ela não foi feliz, algum dia, uma Marina há de ser feliz. O seu caipirinha, que é como chama carinhosamente o marido, concordou com a condição que o nome do próximo é ele quem escolhe; já até tem algumas idéias... Waltinho e Luisa Maria nunca mais se falaram. Dizem que Waltinho torrou todo o dinheiro na esbórnia, com mulheres, bebida e jogo. Muito jogo. Ganhou muito dinheiro numa epoca, é o que contam. Se tivesse parado, podia estar rico. Mas acabou perdendo tudo de volta. Gastou tudo, despreocupado com o futuro, com o amanhã. Quando acabou o dinheiro, começou a trabalhar em bicos, em trabalhos simples, humildes. Certo dia, pegou-se sentado no sofá, vendo TV, depois de chegar do trabalho. Viu-se no pai. Não pôde suportar aquilo, e, naquela noite mesmo, abandonou tudo. Deixou tudo o que tinha para trás, e sumiu, em busca de uma resposta para a vida. Nunca mais se ouviu falar de Waltinho. Dizem, as histórias do interior onde mora Luisa Maria, vagou por um tempo sem saber para onde, até que chegou ao mar. Encantou-se com o mar. Tornou-se pescador, construiu uma familia, e educou bem os filhos. Vive até hoje perto do mar, ouvindo o som das ondas a niná-lo, como sua mãe nunca o fez. Acorda cedo e ganha a vida com a força de seus braços. À tarde volta para casa trazendo sempre alguma coisa para a mulher e os filhos, e a beija como na primeira vez em que se beijaram. É feliz, como ninguém jamais foi. Isso é o que dizem as histórias lá do interior, mas você sabe como são essas histórias...

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Exercitando Literatura/Ficção (2)

Ela se sentia só e com vontade de chorar. Angustia. Uma angustia que de repente, assim do nada, tomou conta de seu peito. Ele ligou pra saber como ela estava, e percebeu que não estava bem. Foi até a casa dela. Ela estava triste, só isso, disse, sem motivo. Apenas estava triste. Ele a abraçou. Tentou consolá-la. Não sabia o que fazer, o que dizer - nunca teve muito jeito com essas coisas, só queria que ela ficasse bem. Ela chorou nos seus braços, ele acolheu sua cabeça em seu ombro. Ficaram ali, sem dizer nada, por muito tempo. Já era noite quando havia chegado, agora estava ainda mais tarde. "tenho que ir; você tem que dormir". Ela concordou balançando a cabeça. Levou ele até a porta, abriu. Ele saiu e ela olhou para ele caminhando até o pequeno portão. Correu até ele e o segurou pela mão. "Não vai; fica aqui comigo hoje. Não quero ficar sozinha nessa casa". Os seus país tinham ido viajar e ela estava sozinha em casa, mas não era baladeira, nem pensou em dar uma festa. "Posso? Será que devo?" Ela sorriu dizendo que sim, deveria. Ela o puxou pela mão, de volta para dentro. Entraram, ela fechou a porta, e o puxou pela mão novamente, escada acima. Pouca coisa foi dita. Ela o levou até seu quarto, carregando-o pela mão. Ela deitou-se em sua cama; "me abraça", disse, "só me abraçe; preciso ser abraçada". Ele olhou para ela, deitada de ladinho, joelhos dobrados, encolhida, abraçada num travesseiro. Ele deitou-se atrás dela, também de lado, espremendo-se na cama de solteiro. Passou seu braço entre os braços dela. Ela ajeitou-se, indo um pouco para trás, aconchegando-se junto ao corpo dele, sentindo seu corpo junto ao dela. Sentiu-se protegida, acolhida. Nada disseram, apenas sentiam o som da respiração um do outro. Ficaram ali um longo momento, sentindo aquele momento único, mágico. Não haviam segundas intenções, aquele momento, a união, a sintonia, era muito mais forte do que qualquer experiencia sexual. Adormeceram, abraçados. De manhãzinha, a claridade fraca do sol nascente o despertou. Abriu os olhos, sentindo o calor do corpo dela junto ao seu, seu braço ainda envolto nela. Sussurrou, para si mesmo, como que sem esperar que ela ouvisse "eu queria poder acordar assim toda manhã.". Ela respondeu, sussurrando de volta "eu também". Ela virou-se, e ficaram frente a frente, nariz a nariz quase colados, sentido o ar que entrava e saia da boca do outro. Olhando-se nos olhos. Um olhar profundo. Ele pensou que gostaria de guardar a imagem daquele olhar para o resto da vida, que gostaria de poder se lembrar dele no instante antes de sua morte por que então morreria feliz. Ela pensou que gostaria que depois de anos ele ainda olhasse para ela assim,  toda manhã. Ela levou sua mão até o rosto dele e fechou seus olhos. Ela também fechou os olhos. Suas bocas se aproximaram e seus lábios de tocaram. Após terem dormido a noite juntos, abraçados, deram seu primeiro beijo.